(Publicado no site Escrita para Cinema e Televisão – João Nunes)
No que a arte da preparação de atores se parece com a escrita de um roteiro?
À primeira vista, essas duas áreas são bem diferentes. Se o roteiro é geralmente criado como um trabalho solitário entre o escritor e suas ideias, a preparação de atores é feita em colaboração de equipe geralmente muito tempo depois que o roteiro foi finalizado. Mas no livro “Fátima Toledo, interpretar a vida, viver o cinema”, a preparadora Fátima Toledo mostra muitos aspectos da preparação de elenco que podem contribuir, e muito, para a confecção do filme desde a fase do roteiro.
Desde que começou a trabalhar nessa área, em 1981 com o filme “Pixote”, de Hector Babenco, Fátima aprimorou um modo de trabalho para fazer os atores viverem seus personagens de uma forma visceral e de certa forma naturalista. O chamado Método, que Fátima desenvolve até hoje, propõe colocar os atores em contato com as situações do roteiro sempre voltando a atenção para contradições e sentimentos reprimidos.
No livro, que surgiu a partir de depoimentos de Fátima ao professor Maurício Cardoso, a preparadora de elenco relembra sua trajetória pelos filmes em que trabalhou. Não à toa, todos eles tiveram grande destaque e chamaram a atenção justamente pelas atuações fora do comum.
“Compreendi que não existe personagem mesmo, mas situações a serem vividas pelo ator. A verdade do ator deve estar presente na cena, senão ele se torna refém de uma construção artificial que costumamos chamar de personagem.”
Em depoimento no livro, o diretor Karim Ainouz, que trabalhou com Fátima em “O Céu de Suely”, ressalta a importância do Método na Retomada do Cinema Brasileiro.
“É como se o trabalho dela viesse a contribuir para tirarmos a poeira de um cinema que se colocava perto demais da televisão, da fala e da ausência de corpo, para um cinema mais próximo da dinâmica, do movimento do cinema em si, do coração.”
Em outro trecho, Wagner Moura, que trabalhou com a preparadora em “Cidade Baixa” e “Tropa de Elite”, afirma: “Fátima não trabalha com a ideia de personagem. Para ela, o personagem é você mesmo posto em contato com as situações dadas no roteiro”.
Isso chama a atenção para uma das controvérsias que envolvem o Método. Há quem afirme que Fátima destrua os atores, revelando aspectos até então não conhecidos (o lado Sombra, como ela diz) ou mesmo resgatando lembranças pessoais dolorosas do passado. Tanto é que muitos atores que trabalham com ela relatam situações de grande instabilidade física e emocional por conta da rotina rigorosa dos treinamentos. Trata-se do embate antigo entre pessoa e personagem e os limites (ou a falta deles) na hora da gravação.
“Hoje faço um exercício para separar minha energia das situações vividas no filme e das pessoas que participam dele. É um exercício interno que me libera dos sofrimentos experimentados durante os ensaios”, Fátima afirma.
No ponto de vista da produção de roteiros, as lições de Fátima ensinam a encontrar a diferença entre a individualidade do roteirista com o universo particular dos personagens. Ela defende que o objetivo final da prática do método deve ser experimentar as diferentes relações entre as personagens, nos afastando das aparências imediatas de cada cena.
Com as lições de Fátima Toledo, é possível ressaltar um dos elementos mais complicados na hora de escrever uma estória: o subtexto. O não dito, os gestos, as reações, as contradições e mesmo os pensamentos reprimidos desempenham uma função capaz de adicionar uma série de dimensões à estória como um todo. É dessa forma que o conhecimento do Método de Fátima Toledo pode contribuir para a criação de obras mais completas, interessantes e duradouras.
Referência: “Fátima Toledo, interpretar a vida, viver o cinema”, de Maurício Cardoso (editora LiberArs, São Paulo, SP, 2014).