O Cinema segundo Scorsese

Em que momento você se apaixonou pelo Cinema? Você lembra? Qual filme te fez mergulhar na penumbra da Arte de tal modo que a partir daquilo nada seria como era antes? No artigo “The Persisting Vision: reading the language of Cinema”, Martin Scorsese lembra que foi “The Magic Box” (1950) o filme que o lançou na magia e na obsessão pela Sétima Arte.

No texto publicado pela The New York Review of Books, Scorsese fala sobre o processo do Cinema enquanto uma linguagem capaz de fornecer verdades emocionais sobre a vida. “É claro que não é a vida – é uma invocação da vida, é um diálogo constante com a vida”.

Magic-Box

O Cinema é como um espaço sagrado em que o mundo real subitamente parece pouco mais do que uma recriação. Segundo Scorsese, o que faz o Cinema tão especial são os elementos que compõe uma narrativa própria de um meio de expressão. Tem a luz, o começo de tudo. E tem o movimento, que acompanha a espécie humana desde que os homens da caverna tentaram criar a impressão de locomoção dos animais. “Recriar movimento é uma tentativa de capturar o mistério de quem e do que nós somos e assim contemplar esse mistério”.

E, é claro, há o elemento do tempo. O filme dos irmãos Lumière, reconhecido como o primeiro filme publicamente projetado, foi filmado em 1895. Mas quando o assistimos estamos presenciando aquela realidade no presente. Esse é outro aspecto que faz do cinema um meio tão poderoso: o desenrolar da trama é percebido por nossos olhos como algo do momento agora.

O quarto elemento apontado por Scorsese é a inferência, a imagem que se forma na mente do espectador. “Você pega um plano e junta com outro plano e você experimenta uma terceira imagem que não existe realmente nas imagens anteriores.”

Esse conceito da inferência foi objeto de teoria e prática do russo Sergei Eisenstein. ”Se você muda o tempo do corte para alguns frames, mesmo que suavemente, a imagem que se forma na mente muda também. E isso é chamado, apropriadamente, de linguagem do filme”.

Martin_Scorsese

É assim que Scorsese defende o estudo da gramática audiovisual para que as pessoas entendam o que estão vendo e encontrem as ferramentas para se orientar num mundo onde há imagens a todo o lugar. “Nós encontramos imagens todo o tempo de um jeito que nunca houve antes. É por isso que eu acredito que devemos ensinar linguagem visual nas escolas. Devemos educar as pessoas para que elas entendem as diferenças entre imagens que engajem nossa humanidade das imagens que apenas querem vender alguma coisa”.

Artigo completo (em inglês): “The Persisting Vision: reading the language of Cinema”

O Poder do Filme

The Power of Film

Quando o circo reinava como uma das principais formas de entretenimento do mundo, um artista chamado P.T. Barnum teve a ideia que iria revolucionar seus negócios. Em seu circo “O Grande Show da Terra”, Barnum decidiu que os elefantes, os palhaços e os trapezistas deveriam se apresentar simultaneamente no mesmo picadeiro.

Em vez de assistir aos números em forma sequencial, o respeitável público veria tudo ao mesmo tempo, decidindo a que parte do picadeiro dar mais atenção.

Muitos anos depois, o cineasta Americano D.W. Griffith decidiu aplicar o mesmo princípio para a Sétima Arte. Foi o surgimento oficial da montagem paralela no Cinema, recurso capaz de apresentar diferentes personagens em diferentes locações de forma simultânea. E até no mesmo plano.

Essas e muitas outras histórias estão presentes no livro “The Power of Film” (“O Poder do Filme”, ainda sem tradução em português), de Howard Suber. O professor americano que foi um dos fundadores do programa de Cinema e Televisão da Universidade da Califórnia (UCLA) publicou em forma de livro alguns princípios tradicionais mais conhecidos da arte cinematográfica. O livro está estruturado em verbetes que vão de A a Z, sempre com ricos exemplos da História do Cinema Norte-americano.

Se por um lado a estrutura do livro é extremamente didática, como um grande glossário, por outro há insights muito interessantes. Um deles, é o verbete “Cenas Obrigatórias”.

O professor explica a ideia de que todo filme antecipa uma cena obrigatória que deve acontecer antes do fim da trama para satisfazer as necessidades da narrativa. Em “Cidadão Kane” (1941), por exemplo, toda a história gira em torno da busca do jornalista em descobrir o significado de Rosebud, a última palavra pronunciada no leito de morte pelo protagonista Charles Forster Kane. Essa premissa, diz o professor Suber, antecipa a cena obrigatória da descoberta final.

“Se o filme terminasse antes de responder o significado de Rosebud, hoje todo mundo ia perguntar Orson quem?”, conta Suber em referência ao diretor e ator Orson Welles.

Nesse sentido, em todo filme há um contrato tácito entre os realizadores e o publico. “É algo que garante o ‘Se você ver esse filme, você vai ver….’”, afirma Suber. “Antecipar a cena obrigatória aumenta o interesse da audiência no filme. É como assistir a um show de mágica: a gente geralmente sabe o que vai acontecer, mas não exatamente quando nem como”.

Outros verbetes:

ACIDENTES  – Drama é sobre decisões e ações humanas e suas consequências. Os personagens devem ser responsáveis pelo que acontece com eles.

COMÉDIA – A tragédia constrói a tensão sobre o crescimento das ações até culminarem no clímax emocional. A comédia, por sua vez, constrói a tensão e a libera pela risada. Assim, a comédia tende a ter uma estrutura mais episódica e as risadas interrompem a performance sem interromper o pensamento.

ENGANO – Platão queria banir os contadores de histórias porque eles contavam mentiras, o que era definido como qualquer coisa que não fosse a verdade. Contadores de história praticam a arte do engano pela mesma razão que os mágicos: porque é fascinante.

FAMÍLIA – A família é também o primeiro lugar onde experimentamos tensões e conflitos entre indivíduos e as necessidades do grupo, entre desejo e dever, o mais fundamental conflito de todos.

PERSONAGEM, PODER – Nos mais memoráveis filmes populares, dois tipos de poder realmente interessam:

a) O heroi é melhor que outros personagens não porque ele tem mais poderes, mas porque ele tem maiores princípios;

b) O heroi é melhor que os outros porque ele possui algo que, em última análise, define todos os herois: força de vontade.

REALISMO – Filmes não são espelhos do mundo, mas interpretações de mundo. Filmes não são sobre realidade, mas sobre o mundo interior da história. A lógica da vida não é necessariamente a mesma lógica do Cinema. O Realismo na arte é mais um estilo do que um fato.

VINGANÇA – Vingança é uma forma primitiva de predecessor da justiça. A pessoa que procura vingança quer apenas deixar as coisas “empatadas” por conta de algo que a afetou diretamente. Justiça, no entanto, envolve uma Terceira parte que não se beneficia pessoalmente do fato.

SACRIFÍCIO – Os herois são melhores que a gente não necessariamente porque eles possuem grandes poderes, mas porque eles estão dispostos a sacrificar mais coisas que nós.

Referência:

“The Power of Film” (Michael Wiese Productions, 2006), de Howard Suber

Somewhere Around

Logo - Somewhere Around

“Somewhere Around” é um programa de entrevistas com gente interessante pelo mundo afora.

Kellee Santiago     

Você acredita que jogos de vídeogame podem ser arte? A primeira entrevistada do canal “Somewhere Around” acha que sim. Kellee Santiago é desenvolvedora de games nos Estados Unidos e está por trás de jogos artísticos e experimentais como “Flow”, “Flower” and “Journey”.

José Tanaka     

Ele é japonês, mas cresceu em uma família que adorava tanto a cultura espanhola a ponto de dar-lhe o nome de José. José Tanaka amou o flamenco desde criancinha, odiou o flamenco por achar que não era uma escolha própria, viajou para fora do Japão para estudar guitarra elétrica apenas para descobrir que era o flamenco mesmo que ele amava.

Hugh O’Brien

Desde cedo, Hugh O’Brien decidiu que queria viver a vida perigosamente, tirando dela toda a emoção e adrenalina que fossem possíveis. E foi assim, perseguindo um sonho de criança, que ele se mudou para Hollywood e virou dublê profissional.

Juliette Brun  

Para Juliette Brun, chocolates fazem a vida mais doce. Ela é a criadora de “Juliette et Chocolat”, um lugar acolhedor onde é possível provar chocolates variados em Montreal, no Canadá. Mais que isso, ela é uma apaixonada por seu estilo de vida e ama absolutamente tudo o que envolve chocolate.

A arte no limite: lições de Fátima Toledo

Fátima Toledo

(Publicado no site Escrita para Cinema e Televisão – João Nunes)

No que a arte da preparação de atores se parece com a escrita de um roteiro?

À primeira vista, essas duas áreas são bem diferentes. Se o roteiro é geralmente criado como um trabalho solitário entre o escritor e suas ideias, a preparação de atores é feita em colaboração de equipe geralmente muito tempo depois que o roteiro foi finalizado. Mas no livro “Fátima Toledo, interpretar a vida, viver o cinema”, a preparadora Fátima Toledo mostra muitos aspectos da preparação de elenco que podem contribuir, e muito, para a confecção do filme desde a fase do roteiro.

Desde que começou a trabalhar nessa área, em 1981 com o filme “Pixote”, de Hector Babenco, Fátima aprimorou um modo de trabalho para fazer os atores viverem seus personagens de uma forma visceral e de certa forma naturalista. O chamado Método, que Fátima desenvolve até hoje, propõe colocar os atores em contato com as situações do roteiro sempre voltando a atenção para contradições e sentimentos reprimidos.

No livro, que surgiu a partir de depoimentos de Fátima ao professor Maurício Cardoso, a preparadora de elenco relembra sua trajetória pelos filmes em que trabalhou. Não à toa, todos eles tiveram grande destaque e chamaram a atenção justamente pelas atuações fora do comum.

“Compreendi que não existe personagem mesmo, mas situações a serem vividas pelo ator. A verdade do ator deve estar presente na cena, senão ele se torna refém de uma construção artificial que costumamos chamar de personagem.”

Em depoimento no livro, o diretor Karim Ainouz, que trabalhou com Fátima em “O Céu de Suely”, ressalta a importância do Método na Retomada do Cinema Brasileiro.

“É como se o trabalho dela viesse a contribuir para tirarmos a poeira de um cinema que se colocava perto demais da televisão, da fala e da ausência de corpo, para um cinema mais próximo da dinâmica, do movimento do cinema em si, do coração.”

Em outro trecho, Wagner Moura, que trabalhou com a preparadora em “Cidade Baixa” e “Tropa de Elite”, afirma: “Fátima não trabalha com a ideia de personagem. Para ela, o personagem é você mesmo posto em contato com as situações dadas no roteiro”.

Isso chama a atenção para uma das controvérsias que envolvem o Método. Há quem afirme que Fátima destrua os atores, revelando aspectos até então não conhecidos (o lado Sombra, como ela diz) ou mesmo resgatando lembranças pessoais dolorosas do passado. Tanto é que muitos atores que trabalham com ela relatam situações de grande instabilidade física e emocional por conta da rotina rigorosa dos treinamentos. Trata-se do embate antigo entre pessoa e personagem e os limites (ou a falta deles) na hora da gravação.

“Hoje faço um exercício para separar minha energia das situações vividas no filme e das pessoas que participam dele. É um exercício interno que me libera dos sofrimentos experimentados durante os ensaios”, Fátima afirma.

No ponto de vista da produção de roteiros, as lições de Fátima ensinam a encontrar a diferença entre a individualidade do roteirista com o universo particular dos personagens. Ela defende que o objetivo final da prática do método deve ser experimentar as diferentes relações entre as personagens, nos afastando das aparências imediatas de cada cena.

Com as lições de Fátima Toledo, é possível ressaltar um dos elementos mais complicados na hora de escrever uma estória: o subtexto. O não dito, os gestos, as reações, as contradições e mesmo os pensamentos reprimidos desempenham uma função capaz de adicionar uma série de dimensões à estória como um todo. É dessa forma que o conhecimento do Método de Fátima Toledo pode contribuir para a criação de obras mais completas, interessantes e duradouras.

Referência: “Fátima Toledo, interpretar a vida, viver o cinema”, de Maurício Cardoso (editora LiberArs, São Paulo, SP, 2014).