De carona com Jean-Claude Carrière

A Linguagem SecretaO Cinema desenvolveu uma linguagem mágica, uma gramática natural e intuitiva capaz de conectar plateias das mais diferentes origens e culturas em torno daquele espaço luminoso e retangular que é a tela de Cinema.

Viajando entre reflexões sobre a arte e confissões profissionais, o roteirista francês Jean-Claude Carrière (colaborador do grande cineasta espanhol Luis Buñuel) traz em “A Linguagem Secreta do Cinema” um legado pela busca das engrenagens que fazem o Cinema tão mágico.

Carrière acredita que a resposta – uma delas – pode estar por trás da linguagem cinematográfica. Não a gramática de planos, ângulos e sons diegéticos, mas aquilo que está em outro lugar, de algum modo escondido.

“Ver é selecionar, isolar. Nenhuma visão da totalidade é concebível – ver aquela linda paisagem do mar sobre as montanhas – enche os olhos, mas não conseguimos ver tudo de uma vez só.Para ver, para ter a certeza de que está vendo, você precisa diferenciar o objeto em foco de tudo o que o cerca e que nele interfere. Do ponto de vista técnico, a visão é uma técnica e um subterfúgio. Toda visão é relativa e necessariamente incompleta. (…) O cinema é o grande selecionador. Os limites da tela são delineados geometricamente e são bem definidos. Tudo em volta deles é sombra. Existe o que está na tela – um bombardeio de fótons organizados – e existe o que não está na tela – o enevoado, o escuro, o imperceptível, o invisível.”

Uma das obsessões de Carrière é justamente visualizar o cinema como anatomia do tempo. “Às vezes eu me pergunto se essa destruição deliberada do tempo não é uma das obsessões secretas do cinema: eliminar fisicamente o tempo, obliterá-lo, construir uma ilusão tão forte que as plateias verdadeiramente deixem de envelhecer e saiam do cinema rejuvenescidas”.

Para ele, é durante a projeção do filme que o Cinema separa um grupo de pessoas do resto do mundo. “É como se, fugindo da turbulência da vida durante duas horas, a plateia pudesse esquecer o tempo, pudesse parar de envelhecer. As cavernas modernas nos protegem do mais antigo dos males.” De fato, o relacionamento do cineasta e da audiência com o tempo está longe de ser ingênuo. Parte fundamental da linguagem do cinema, o tempo pode ser avançado, retrocedido, preparado para romper quaisquer limites além da nossa imaginação. “Meio acordados, meio entorpecidos, forjamos a cada segundo um contato íntimo, distinto, por vezes contraditório com o filme. E o tempo é o mais importante componente deste contato. Mas ele permanece invisível, como o vento balançando as árvores.”

Depois de uma vida inteira dedicada à arte do roteiro, Carrière surge com uma reflexão que contribui para resolver o dilema que todo roteirista enfrenta ao perceber que tudo o que ele escreve está fadado a desaparecer no que o autor chama de metamorfose indispensável.

“Quando a filmagem termina, os roteiros são descartados, rapidamente jogados fora; converteram-se numa coisa diferente; não têm mais nenhum tipo de existência. Com frequência, comparo essa metamorfose com a transformação de uma lagarta numa borboleta. O corpo da lagarta já contém todas as células e todas as cores da borboleta. É a borboleta em potencial. Mas não pode voar. No entanto, o ímpeto de voar está profundamente entranhado na sua essência mais secreta.”

Sobre o futuro do cinema e da linguagem audiovisual, Carrière exorta a todos, cinéfilos e cineastas, a pensar longe do esquema, dos padrões e da zona de conforto: “Sonhar com um tipo de cinema que ainda não existe significa aceitar antecipadamente o risco, num jogo cujas regras são desconhecidas. Significa lidar com mecanismos secretos cujo movimento não estamos certos de poder retardar ou fazer cessar, uma vez iniciado. E, além de tudo, significa saber desde o início que a realidade vai se opor com toda a sua força.”

Referência: “A Linguagem Secreta do Cinema”, de Jean-Claude Carrière (editora Nova Fronteira, 2006)

Roteiros Incríveis: “Annie Hall”

screen-shot-2017-02-15-at-9-32-23-pmO ano de 1977 foi inesquecível para a História do Cinema. Enquanto Steven Spielberg trazia OVNIs para as telas em “Contatos Imediatos do Terceiro Grau”, David Lynch entrava na escuridão surrealista de “Eraserhead” e John Travolta arrebatava as plateias e bilheterias de todo o mundo com “Os Embalos de Sábado à Noite”.

Por outro lado, Bergman refletia sobre o nazismo em “O Ovo da Serpente”, George Lucas fundava uma mitologia bilionária com o primeiro Star Wars e um neurótico comediante nova-iorquino colocava todo seu conhecimento sobre cinema em um filme de baixo orçamento e grande repercussão.

“Annie Hall” (ou na tradução brasileira “Noivo Neurótico, Noiva Nervosa”) traz uma série de recursos da linguagem audiovisual, todos eles usados de forma inteligente para integrar os vários aspectos da história como um todo.

Para isso, Woody Allen usa técnicas variadas como legendas que revelam o pensamento dos personagens, cenas em animação, cronologia variável, metalinguagem, telas dividas e até o recurso de dirigir-se diretamente ao espectador, quebrando a chamada quarta parede.

O sexto filme dirigido por Woody Allen é ambicioso e ao mesmo tempo sensível. Parte dessa sensibilidade – que remete à história universal de amores partidos, marcantes e eternos -, vem do roteiro.

“Annie Hall” conta a história de do comediante judeu Alvy Singer e sua paixão por Annie Hall, uma cantora em início de carreira. A aparente simplicidade da trama central é, ela mesma, um recurso que Woody Allen usa para fazer grandes reflexões sobre situações banais que todos nós enfrentamos no dia a dia. Como na cena em que Alvy espera na fila e é obrigado a ouvir um sujeito falar bobagens sobre Fellini e sobre o pensador Marhall McLuhan.

ALVY

I’d give anything for a large sock with horse manure in it.

Line moves, Alvy addresses camera.

ALVY

What so you do when you get stuck with a guy like this behind you at a movie line?

A cena chega ao clímax de forma hilária quando o verdadeiro McLuhan aparece para esclarecer um ponto da discussão. É Woody Allen em sua melhor forma.

Outro recurso pensado no roteiro de “Annie Hall” está relacionado com as motivações de Alvy Singer. Woody Allen sabe que seu protagonista é o coração do drama. E é pelo ponto de vista de Alvy que o espectador é apresentado para a personagem-título. Dessa forma, o diretor oferece doses de motivação que mapeiam as ações ou pensamentos futuros de Alvy Singer. Assim, os flashbacks acabam sendo um sábio recurso para as idas e vindas na vida do protagonista.

A propósito, Alvy Singer pode ser considerado o alter-ego do diretor, uma espécie de modelo de personagem que permeia grande parte da obra de Woody Allen. Alvy é judeu, neurótico, engraçado, deslocado e bastante inseguro em relação à relacionamentos e mesmo à certos assuntos como sexo. O que nos leva ao diálogo afiado do roteiro, outra característica marcante do Woody Allen roteirista.

Nesta cena, Alvy se recusa a entrar no filme depois que a sessão já começou.

ALVY

I’m sorry. I have to see a movie from the beginning to the end. I’m anal.

ANNIE HALL

That’s the polite word for what you are.

“Annie Hall”, filme que definitivamente marca a carreira de Woody Allen, é uma obra-prima. Mais de 30 anos depois, a obra ainda permanece fresca, viva, engraçada, tocante e imortal.